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Bordar a Vida - nutrir a Presença honrando quem veio antes e abrindo caminhos pra quem virá


O primeiro bordado que me lembro de ter criado foi uma fusão da lua e do sol. Não sei se tenho fotos, mas me lembro bem dele. Se transformou num lindo caderno, adquirido por uma amiga querida, que já não vive mais nesse plano.


Lembro do dia em que postei a foto do caderno em um grupo de mulheres e ela me enviou mensagem reservando.


Foi como se minha alma se ascendesse de alegria!


Esse momento parece concluir um ciclo criativo do artista/artesão: a entrega ao mundo! Nem sempre acontece, mas quando acontece, tem um tempero especial que se acrescenta no borogodó todo.


Criar com as mãos é uma coisa tão bonita quanto potente — social, econômica, política e espiritualmente falando.


É muito comum, principalmente entre crianças e mulheres, essa qualidade se destacar com naturalidade, como se fizesse parte da nossa linguagem de comunicação, onde nenhuma outra palavra alcança.


Uma comunicação que precisa de tempo: de fogo, de molde, de costura, de tinta… um tempo que se derrame em seu fazer sem a ânsia do fim. Que se metamorfoseia durante o processo e renasce a partir dali.



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Hoje, na casa da minha vó, junto com minha mãe e minhas tias, aconteceu dessas coisas lindas que fazemos bem… crochê, tricô, bordado, comida sendo feitos, misturados, compartilhados como forma de entregar com amor aquilo que de melhor temos pra oferecer: nossas artes presentes!


E são tantas as formas possíveis…


Honrando essas que vieram antes, clã de mulheres fortes: artistas, curandeiras, plantadeiras, benzedeiras, cozinheiras, parteiras, empreendedoras…


Honrando em especial a matriarca, minha avózinha querida, que tanto já caminhou, abriu portas e experienciou nessa vida!


Dona Angelina é das letras, mas também é das linhas.


Até onde minha memória alcança, me lembro dela envolvida com alguma artesania: ora costura, ora crochê, ora bordado… dentre outras coisitas mais! E cada vez que estive (e estou) com ela nesses momentos, recebo ensinamentos que vão além do que qualquer teoria ou prática poderiam me ensinar. Às vezes tinha um Q de mistério, de coisa a ser revelada aos poucos, de aprendizados que só mesmo o tempo entrega em conta-gotas.


Conta-gotas…


Às vezes a gente se apressa no ritmo do mundo e esquece da potência imensa do conta-gotas.


Hoje, enquanto bordava durante o almoço na vovó, uma de minhas tias sentada ao lado me disse que o bordado estava muito bonito. Então comecei a contar sobre os cadernos que crio, etc… e ela seguiu, transbordando em palavras sua apreciação.


Foi aí que me vi manifestando um antigo padrão de escassez: procurando qualquer coisa pra falar que pudesse diminuir, compactar ou empobrecer meu processo criativo (o que, em minha própria defesa psíquica e preservação emocional, considero um sintoma transgeracional de uma coletividade patriarcal na busca incessante de poder às custas da tentativa de dominação dos mais vulneráveis, por medo de encarar e sentir a própria incerteza advinda do contato com a força criativa que dá origem à própria vida).


E o que saiu foi uma das introjeções mais bem implantadas na mente coletiva nos dias de hoje:


“Mas eu demoro muito pra fazer, tia!”


E foi aí que ela ressurgiu ecoando uma frase que já escutei em outros contextos, de outras MULHERES SÁBIAS que tenho a alegria de encontrar no caminho, mas que vale a pena sempre relembrar e revisitar:


“Ué, qual o problema? Tá com pressa de quê?”


E eu, logo me percebendo atuando nesse papel, tratei de afirmar e me lembrar, sorrindo:


“Pois é né, tô com pressa de nada não.”


Antes disso, tinha ouvido outra tia contar que não trabalha com o crochê dela “pra fora” (que é simplesmente maravilhoso), porque as pessoas não valorizam as peças tanto quanto valem. Então, prefere fazer assim: presentear a família e amigas, somente, para não passar a raiva de ter que receber um valor abaixo do que realmente vale sua arte.


Eu sabia do que ela estava falando.


Mas também sei que isso é reflexo desse surgimento, nada casual, do pensamento materialista/linear/capitalista que tem sufocado nossa vida criativa, mal contado nossa história e persuadido nossa forma de sentir-agir no mundo. Nos fazendo buscar mais adequação e performance do que realização plena.


E que afirmar o devido valor das nossas artes é uma forma de comunicar a riqueza que existe em cada processo artesanal, seja ele qual for. Acender o holofote para o mundo feminino e tudo aquilo que não está sendo visto e/ou valorizado dentro dele, e que simplesmente mantém viva uma qualidade que nenhuma I.A. pode substituir: nossa sensibilidade.


Como uma querida amiga artista porreta, que tem florescido em sua arte, me recordou uma vez, enquanto conversávamos sobre precificação artística:


“Pensa em colocar o valor de acordo com o que você realmente SENTE que vale, no seu coração mesmo, numa somatória de fatores: material, tempo dedicado, energia desprendida, sustentabilidade do fazer artístico. De uma forma que, quando você receba, você se sinta realmente nutrida.

E não importa quantos NÃOS você vai receber. Porque os SIMS virão das pessoas que realmente enxergarem e reconhecerem o valor da sua arte.”


Então, deixo aqui essa partilha, honrando as que vieram antes e abrindo caminhos para as que ainda virão.


“Bordar a vida” é sobre isso, afinal.


Cada ponto, encontro, cor, formato, silêncio e palavra ensinam sobre nós, nossas vidas, o mundo… a Força Matriz.


É interessante também perceber que geralmente os nós se fazem quando deixamos de prestar atenção.

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